Anda na contramão da multidão (que ao ver ele vindo falando alto e gesticulando sozinho abre caminho). Atrás vem o cachorro latindo para os pombos que dão a entender que voarão dali, mas apenas batem um pouco as asas e voltam a brigar por migalhas. Em certo momento se virou para ele (que não parava de latir ora para pombos, ora para carros, motos e pessoas que passavam) abrindo os braços e dizendo palavras indecifráveis, mas que de alguma forma fizeram sentido para o cão que parou de latir e sentou como esperando uma próxima instrução (que não veio).
Em frente a uma caçamba de lixo começa a vasculhar sacolas e a jogar num carrinho de supermercado (sem precisar olhar para ele) com uma única mão o que julga prestar, enquanto na outra segura uma garrafa de cachaça já no fim. Chove. Atravessa a rua e vasculha dessa vez uma lixeira pequena presa a um poste. Outro gole. Senta na porta de uma loja e começa a comer com a mão o resto de uma quentinha. O cão se aproxima, ele gesticula como quem quisesse dizer para o bicho sair dali, que ele não iria dividir, que a cara de coitado não o comoveria, então entendendo o recado o cão se afasta do velho e se prepara para atravessar a rua e o motorista buzina e ele quase é atropelado, mas depois segue como se não tivesse ocorrido muita coisa.
Entre cachorro de rua e de apartamento há muitas distinções (entre humanos talvez o mesmo não se aplique: as pessoas que andam na rua bem vestidas são tão malucas quanto aqueles que dialogam com algo ou alguém que só eles enxergam; estão com mais fome do que que aqueles que não tem o que comer; são mais sujas do que os que não tomam banho e se entorpecem mais): caso fosse um desses criados cheios de mimo em condomínio fechado, cães que têm rede social e seus donos fazem festas de aniversário para eles obrigando-os a vestirem aquelas roupinhas ridículas, certamente paralisaria com a buzina do carro e seria atropelado, ou se não ficaria traumatizado, sonharia com o ocorrido, ficaria com medo de sair à rua novamente, precisaria de psicólogo — diferente do de rua, que, já maduro e acostumado com a vida, apenas seguiu.
O mendigo não termina, guarda um pouco, se deita na porta de uma loja e volta a falar sozinho até pegar no sono com o barulho das gotas d'água caindo ao fundo. Não muito longe, o cão revira as sacolas de lixo que os moradores do bairro jogam ao lado da caçamba quando a mesma está cheia, rasgando-as com patas e dentes e deixando o rastro da sua passagem por ali, e não muito tempo depois chegariam outros cães, urubus e pessoas para fazer o mesmo.
*
Não chove mais. Ao abrir o olho a primeira coisa que enxerga é o cachorro sentado olhando para ele mas desta vez não resmunga para que saia. Começa a latir. Abre o resto da quentinha e deixa para o cão e observa-o comendo feliz balançando o rabo. Tira o cobertor sujo do chão e se prepara para colocar no carrinho de forma cuidadosa como o que estivesse ali fosse coisa de valor, mas eram só recicláveis como latinhas que ele venderia num ferro-velho para comprar bebida. O carrinho não estava mais ali, se dá conta e xinga, mas o que o irritou mais do que isso foi ter percebido segundos depois que dentro dele tinha uma garrafa de cachaça inteirinha. Comida sempre dão ou se acha procurando ou muitas vezes bastava dormir, e, magicamente, quando acordava, havia algo deixado por alguém para comer no chão perto dele.
Não gosta de pedir dinheiro. Não gosta porque não é bom nisso. Até tentou. No início. A concorrência era grande e ele não tinha chance contra moleques de rua de 5 e 6 anos descalços e sem camisa que ficavam na porta das lojas Americanas chamando quem passava de tio ou tia pedindo que comprassem algo para revender, ou os que esperavam do lado de fora de lanchonetes perguntando se não poderiam comprar algo pra comer.
*
Não sabe que horas são, só que está escurecendo. Pessoas saem dos prédios e locais onde trabalham e apressam o passo conforme a noite vem e também conforme o enxergam. Sentado no chão, pousa o olhar em coisa alguma, sem piscar. Moscas rondam seu pé direito, e ele por vezes o sacode de forma automática só para afastá-las. Elas retornam. Os olhos deixam claro que sua cabeça e corpo estão em outro lugar, mas mesmo assim o mendigo percebe todos os vultos e passos e a pressa dos que passam na rua perto dele sem olhar diretamente para ele (e ele sem olhar para as pessoas). Até que se levanta. A roupa ainda úmida da chuva tomada mais cedo e o vento o fazendo sentir um pouco de frio. Vai andando até um prédio abandonado onde outros moradores de rua se reúnem para dormir e também ficarem menos vulneráveis durante esse período, pensando que talvez o cachorro tenha latido naquele momento para alertar que estavam roubando seu carrinho. Pouco importa agora. Estava ficando sóbrio e pra ele ficar sóbrio é sempre ruim. Lá é também o local onde voluntários de ONGs vão uma vez por semana distribuir sopas, e na época de frio vão duas vezes e fazem campanhas e pontos de recolhimento de agasalhos em lugares estratégicos da cidade para depois redistribuir entre os mais necessitados.
Antes de entrar no prédio ouve de longe uma falação. Escuta por alto que amanhã obrigarão eles a desocupar o prédio, que não sei quem ganhou depois de não sei quanto tempo isso na justiça e que em breve os proprietários dos apartamentos residirão ali. Ele não se atenta muito. Beija a mulher, que comenta do carrinho e ele fica mudo, como confirmando que o pior tinha ocorrido e ela se enfurece, a falação dos demais cessa e todos viram os olhos pra eles dois. Ele olha apenas para a garrafinha que está ao lado do pé dela e pega e toma um gole e ela manda parar de beber e os dois se deitam para dormir e ele não discute, ela que apenas fala e resmunga de tempos em tempos, e quando pensa que acabou e que agora relaxará, não, ela se mexe debaixo da coberta e mesmo de olhos fechados continua soltando esporadicamente xingamentos. Diferente das outras noites não se deitam de conchinha — não de imediato —, tempos depois ela acaba cedendo e posiciona a mão dele na barriga dela. Ele dá uns tapinhas de leve. Sentia fome e pensava na quentinha dada ao cachorro, porém sem arrependimentos. Só queria mesmo beber mais um pouco para dormir mais rápido. A insônia vinha a atingi-lo assim como faz com as pessoas que também dormem em outros prédios ou em qualquer lugar do mundo, não estabelecendo distinção entre elas, fazendo todos enxergarem por horas o mesmo fundo preto de quando só fecham os olhos e não dormem, tratando todos como iguais, como uma lei da Constituição (no papel).
***
O mendigo e a mulher decidem sair do prédio assim que acordam. O protesto dos que ficaram só sobreviveu até a chegada da PM.
Vão até a rua onde ontem foi roubado e aponta para o lugar falando "foi ali". Ela tinha dito que o pior não era nem o carrinho de mercado; um igual àquele eles podiam roubar outro de uma grande rede que tinha ali perto, e sim o carrinho de bebê de rodinha azul (com uma das rodas quebrada) que ela tinha achado e que faria falta. Repetiu que isso sim faria falta, e ele falou que não lembrava e ela disse que havia achado e colocado no fundo dele, debaixo das garrafas pet meio escondido, que era pra ninguém roubar, e ele olhou pra barriga dela e prometeu pelo filho que ela esperava dele que acharia. E ainda hoje. O olhar dela foi de quem não tinha muita certeza. Foram caminhando até outra rua e ela puxou um cigarro e disse que estava com fome enquanto passava a mão na barriga e iam andando em direção a um bar.
Ele não tinha ciúme do que ela ia fazer, pois sabia que fazia parte do que chamava trabalho. Quarta-feira não costuma ser tão boa quanto sexta; uma sexta se assemelha muito aos dias das saidinhas que são concedidas aos presidiários durante o Natal, Páscoa e Dia das mães, e a única diferença entre eles e nós é que cumprimos nossa prisão do lado de fora. Segunda-feira é a volta pra cela, o que significa ter de ir trabalhar e depois ainda precisar voltar para suas casas, apartamentos e barracos, o que pode ser pior ainda do que estar preso por grades, pois da cadeia convencional ainda dá para empreender fuga ou pelo menos sabe-se quando se sairá. Ela entra no banheiro do bar, molha o cabelo com a mão, amarra para trás com um elástico, tira um batom do shortinho e passa e sai, depois para do lado de um senhor que bebe e joga numa maquininha de caça-níquel desde cinco horas da manhã. No bar tocava uma música falando de uma mulher que havia traído o marido e, mesmo assim, ele ainda dizia na letra que sentia falta dela, que só pensava nela e que ela não tinha esse direito. Aquele era o bar preferido dela. Era mais fácil tirar dinheiro dos cornos e dos bêbados. Os cornos terminam bêbados e balançando a cabeça afirmativamente enquanto fumam e bebem e ouvem a música que parece que quem escreveu se baseou no que estava acontecendo com eles, então é só ela chegar e ouvir as reclamações e depois conseguir o que quer. O mendigo a observava do lado de fora do bar até ela sentar numa mesa, começar a fazer carinho nos cabelos de um senhor calvo o ouvindo desabafar, e provavelmente o próximo passo seria uma passada na mão da perna dele por debaixo da mesa, depois um beijo, quem sabe, e assim iria até tirar a carteira dele. Chegando nessa parte, ele não queria mais ver. Foi embora. Antes dela entrar, combinaram que se encontrariam naquela mesma rua. O mendigo então foi andando tentando lembrar do carrinho de bebê que ele não se lembrava de ter visto.
*
Andava numa calçada quando um homem o parou e disse "aí, irmão, pode me dar uma informação?" e antes que o mendigo respondesse o homem complementou: "na verdade não quero informação, quero te pedir outra coisa. Chega perto de mim aqui pro pessoal não ouvir a gente conversando... meu amigo, é o seguinte, papo reto aqui, beleza? papo de sujeito homem... te dou 200 reais pra você ir até aquele carro ali, tá vendo aquele carro ali? e (explicou o que o mendigo ia ter que fazer).".
"200?"
"Não tá bom pro senhor, não? duzentão? 400 então."
E antes que o mendigo respondess soltou:
"Te dou até 800, mas tem que ir lá agora, aproveitar que ninguém tá olhando."
"Me dá o dinheiro primeiro."
"E aí como eu vou saber que você vai fazer a parada ou não?"
"Eu sou mendigo, vivo na rua, senhor, você acha que vou correr pra onde?"
"Tô vendo que você não vai fazer a parada... deixa pra lá."
"Eu faço."
"Beleza então, vou ficar te esperando aqui. Faz o seguinte, vou te acompanhar até o carro, eu vou de um lado e o senhor de outro."
O mendigo foi caminhando para o carro, já estava pronto para pegar a bolsa e jogar do outro lado da rua como havia combinado quando, de repente, saltou um político-youtuber (com a língua presa) com uma câmera na mão filmando falando "mestre, o que o senhor ia fazer agora é muito feio, sabia? o senhor tem filha?" e prosseguiu: "imagina a sua filha em um relacionamento abusivo (...)" e dá um sermão no mendigo que de início joga os braços pro ar falando "ahh, não fode", mas ele o obriga a ouvir e o velho não discute, só fica quieto. Tenta fazer a cara de coitado e arrependido. O político termina dizendo: "gente, não seja como esse mendigo... não importa se você está passando fome, não importa se você está com sede, sujo e jogado no meio da rua, se as pessoas passam e te ignoram, se ninguém te ajuda, se você tem que comer do lixo... o caráter vem acima e antes de tudo. Dessa vez o senhor não vai ser preso, isso aqui se trata de um experimento social, mas que fique a lição". O mendigo, no final do sermão, pediu o dinheiro do cara que havia o abordado, pois para ele parecia justo; ele ia cumprir sua parte no trato com quem o abordou e o político entra no carro e dá uma instrução a alguém. O que fez a oferta ao mendigo não sai do veículo, então ele vai atrás desse, dá um tapa no vidro do carro e se altera e grita "eu quero meu dinheiro" e em seguida, desce um brutamontes de mais de cem quilos com uma pistola na cintura e dá um empurrão no mendigo que devia pesar uns 50 quilos (molhado) vestindo três calças, duas camisas e touca, mandando ele ir para aquele lugar e se adiantar.
Não chove mais. Ao abrir o olho a primeira coisa que enxerga é o cachorro sentado olhando para ele mas desta vez não resmunga para que saia. Começa a latir. Abre o resto da quentinha e deixa para o cão e observa-o comendo feliz balançando o rabo. Tira o cobertor sujo do chão e se prepara para colocar no carrinho de forma cuidadosa como o que estivesse ali fosse coisa de valor, mas eram só recicláveis como latinhas que ele venderia num ferro-velho para comprar bebida. O carrinho não estava mais ali, se dá conta e xinga, mas o que o irritou mais do que isso foi ter percebido segundos depois que dentro dele tinha uma garrafa de cachaça inteirinha. Comida sempre dão ou se acha procurando ou muitas vezes bastava dormir, e, magicamente, quando acordava, havia algo deixado por alguém para comer no chão perto dele.
Não gosta de pedir dinheiro. Não gosta porque não é bom nisso. Até tentou. No início. A concorrência era grande e ele não tinha chance contra moleques de rua de 5 e 6 anos descalços e sem camisa que ficavam na porta das lojas Americanas chamando quem passava de tio ou tia pedindo que comprassem algo para revender, ou os que esperavam do lado de fora de lanchonetes perguntando se não poderiam comprar algo pra comer.
"Não tá bom pro senhor, não? duzentão? 400 então."
E antes que o mendigo respondess soltou:
"Te dou até 800, mas tem que ir lá agora, aproveitar que ninguém tá olhando."
"Me dá o dinheiro primeiro."
"E aí como eu vou saber que você vai fazer a parada ou não?"
"Eu sou mendigo, vivo na rua, senhor, você acha que vou correr pra onde?"
"Tô vendo que você não vai fazer a parada... deixa pra lá."
"Eu faço."
"Beleza então, vou ficar te esperando aqui. Faz o seguinte, vou te acompanhar até o carro, eu vou de um lado e o senhor de outro."
Certo dia, depois de acordar de um sono da parte da tarde, viu Rua acasalando com uma fêmea também de rua e decidiu adotar a cachorra para ver os filhotes nascendo. Segundo a geração das pessoas que se consideram pai de pets, o mendigo seria avô. Começou a chover e a escurecer. Não sabia as horas, só que devia ir para o novo prédio abandonado que agora dormia. A chuva apertava; horas antes tinha feito sol, e agora o mendigo tomava chuva e rajada de vento, andava com a água do temporal misturada com esgoto já batendo nos joelhos e ia levando o cão no colo e a cachaça na outra mão e, diferente das pessoas que basta uma virada no clima pra já ficarem gripadas, resfriadas, com crise de rinite, sinusite etc., o mendigo, obviamente, no dia seguinte não sentiria nada daquilo e acordaria 100%. Ele continuaria a comer do lixo, não tomar banho, tomar chuva, sol e vento num mesmo dia, passar frio, fome, não usaria máscara e nunca ficaria doente, mostrando que assim como os cachorros, Deus também não abandona os mendigos. Ele continuaria a comer do lixo, não tomar banho, tomar chuva, sol e vento num mesmo dia, passar frio, fome, não usaria máscara e nunca ficaria doente, mostrando que assim como os cachorros, Deus também não abandona os mendigos.
Parte da crosta preta de sujeira acumulada dos pés dele saía enquanto andava na rua alagada. Não se via mais o asfalto, aquilo se assemelhava a um pequeno rio. O cão ia no colo em silêncio. Ele passou em frente a um bar que tocava uma música de um desses cantores de brega que falava obviamente de sofrimento. A letra dizia "você foi a culpada desse amor se acabar, você quem destruiu a minha vida. Você que machucou meu coração, me fez chorar e me deixou num beco sem saída. Estou indo embora agora, por favor não implora, porque homem não chora...". Parou na porta do bar. Em trechos que se identificava mais, balançava a cabeça afirmativamente. Acabou essa e logo começou outra. " É fato/ Ando sofrendo calado/Escute o meu desabafo/Eu quero te falar". Eu quero te falar, repetiu baixo o mendigo, tentando cantar a música. "Mas eu juro que eu queria aquele olhar de perdão no arrrrrrrrr/ Como criança em seus braços/Eu me sinto um rei de sangue azul/Gosto quando encosta em meu nariz e faz: Bilu-bilu-bilu". "Bilu-bilu-bilu", repetiu o mendigo. Fez o 'Bilu-bilu-bilu' novamente dessa vez de olhos fechados, encostando seu nariz no focinho do cachorro imaginando ser sua ex companheira. Quando a música acabou ele seguiu a caminhada até o prédio abandonado onde iria dormir - onde havia deixado a fêmea que havia adotado.
A água que caía da chuva na cabeça e depois escorria pela face até chegar no queixo e depois cair no chão se misturava com as lágrimas que ele soltava pela primeira vez em muitos anos. Vai passando pelas lojas que já estão com todas suas portas fechadas e também pichadas - sem escapar uma. Talvez quisessem dizer alguma coisa aqueles rabiscos, algo que as palavras que conhecemos não conseguem mas que quase sempre nos vemos obrigados a usá-las por mais que sejam batidas e terminem não chegando nem perto do que gostaríamos de exprimir (ou por outro lado, sem essa visão filosófica da coisa, as pichações representem só uma merda que enfeia a cidade e dá uma imagem de suja).
Já andou bem e está há muitos metros do bar, mas ainda consegue ouvir um pouco do som. Agora toca um funk. um funk que tocava na época dele de jovem, um dos anos 80 que não ouvia há muito tempo, a letra boa, diferente dos "senta, senta, senta, senta" e "bota, bota, bota" de hoje. O mendigo começou a dançar com o cachorro em um dos braços e a garrafa na outra mão no meio da chuva. Um porteiro, de longe, vendo a cena, começou a rir e filmar. O vídeo provavelmente renderá muitos likes, pois assim como as pessoas só gostam de chuva quando já estão em casa e protegidas de se molhar (ou quando não moram perto de lugares onde uma chuva forte pode levar tudo, ou o pouco que resta), mendigo e pobreza é algo que as pessoas só dão atenção e acham nobre na internet, quando estão distantes e imunes de passar por perto na vida real.
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